sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

viver e morrer no Pólo Norte.....

No topo do mundo. Há uma aldeia em que é obrigatório usar uma arma na rua, há mais suicídios que mortes naturais, não é preciso ter documentos e onde as principais formas de lazer incluem caçar e beber álcool. Longyearbjin é a localidade mais a norte do planeta, onde se misturam mineiros e estudantes universitários. E é um sítio privilegiado para estudar as alterações climáticas

As 24 horas de sol ou noite marcam a psicologia da aldeia

Domingo de manhã. Um homem na casa dos 40 anos passeia por uma rua deserta de pessoas, carros e casas. Empurra o carrinho onde, dentro, está o filho recém-nascido, cujo rosto não se vê porque está protegido do frio gélido por um lenço. É um pai normal, com um bebé normal a fazer um passeio normal. Mas, se olharmos em volta, nada mais é muito normal. Porque estamos na aldeia mais a norte do planeta, um local privilegiado para estudar os efeitos do aquecimento global e os sintomas das alterações climáticas. Mas, também, uma microsociedade de 2500 pessoas, criada artificialmente, onde não há nascimentos nem mortes por velhice. Onde é obrigatório andar com armas na rua pela ameaça dos 3000 ursos polares que vagueiam pela vizinhança. Mas onde há mais suicídios do que mortes provocados pelo temido animal, símbolo de Longyearbjin, uma aldeia partilhada por mineiros, estudantes universitários e pessoas que sonharam viver ali.

"Há uma regra em Longyearbjin: se não podes tomar conta de ti, tens de ir embora", explica o pai do bebé , carpinteiro de profissão, mas cujo objectivo quando chegou à pequena localidade do arquipélago norueguês de Svalbard, a 600 quilómetros para norte do continente, colada ao Pólo Norte, era "ser mineiro".

"Os mineiros aqui são muito populares, só há 350, mas para cada posto que vaga surgem mais de 400 candidatos." A razão para tanta popularidade é simples: são o grupo social mais antigo da aldeia. É um trabalho duro mas muito bem pago. Por ano, os mineiros de carvão chegam a acumular 700 mil coroas norueguesas (73,6 mil euros), o dobro do que ganha o carpinteiro que passeia o filho. Trabalham sete dias seguidos nas minas (a alguns quilómetros do vale onde vivem) ou até 14 dias. Depois, regressam e descansam na mesma proporção.

Descansam nos termos de Longyearbjin. Que inclui caçar focas e alces, pescar no mar gelado, guiar scooters pela neve e, à noite, beber com os amigos. Beber com os amigos é, aliás, a única coisa que os mineiros e outros assalariados da terra têm em comum com os estudantes, que estão ali entre um semestre e um ano para estudar na única universidade do mundo dedicada em exclusivo aos estudos do aquecimento global. "Os estudantes não se misturam connosco, estão sempre a chegar e a sair e têm hábitos diferentes", explica o carpinteiro, disfarçando mal a sua falta de paciência para os hábitos dos jovens, cujas casas estão separadas quase um quilómetro do centro. O que, nesta minúscula aldeia, significa que estão isoladas.
Para além dos 350 mineiros e do mesmo número de estudantes, quem são então os outros habitantes desta terra, onde há cinco taxistas, quatro polícias em part-time, dois hotéis de qualidade acima da média, três bares, uma discoteca, um supermercado e onde o acesso aos correios está previsto para deficientes motores? Cada história explica a natureza única de Longyearbjin. "Era o meu sonho viver aqui, desde miúda", explica a recepcionista de hotel, norueguesa, com 30 e poucos anos e mãe há pouco tempo. "Gosto da natureza, o meu noivo e eu decidimos vir para aqui para ter filhos, é o sítio ideal para uma criança crescer ", completou, respondendo com convicção sobre a questionável oferta cultural, social e de entretenimento da aldeia. E acrescentando um elemento importante no seu sonho: "Os impostos são mais baixos aqui que na Noruega." Na realidade, são em média cerca de 30% mais baixos. Mas é algo que se equilibra com o nível da inflação, já que tudo tem de ser importado para Longyearbjin, o que faz com que, por exemplo, a gasolina seja o dobro do preço no continente (quatro coroas por litro), uma cerveja custe cinco euros e a oferta de bens alimentares tenha limitações.

Quatro a cinco suicídios por ano

Uma ida ao supermercado é uma experiência muito semelhante à do resto do mundo desenvolvido. Excepto em três secções: a dos souvenirs turísticos, a das bebidas alcoólicas e a das armas. Nos últimos anos, o turismo passou a ser uma boa fonte de receita para os seus habitantes, com estudiosos, curiosos e activistas a procurarem compreender, com a exactidão possível, o que se está a passar com o planeta. Já no caso das bebidas, há várias restrições à venda de álcool, nomeadamente para quem esteja ligado a actividades marítimas. Restrições essas que não existem, contudo, para quem quiser comprar uma carabina ou uma pistola.

Ninguém pode andar na rua sem se fazer acompanhar por uma arma de fogo. Os turistas ficam particularmente reféns desta lei. O pretexto passa, mais recentemente, pela morte de uma rapariga devido a um ataque de um urso polar, no topo da colina que enquadra a aldeia. Uma amiga da vítima conseguiu escapar ao atirar-se por uma ravina de 40 metros. Esse incidente foi há nove anos. Desde então, os ursos polares não mataram mais ninguém perto da aldeia (embora os ataques a algumas dezenas de quilómetros da aldeia sejam um pouco mais frequentes). A cada Inverno, quando o fiorde que banha Longyearbjin gela, avistam-se ursos polares a algumas centenas de metros do porto. Mas desde o ataque no topo da colina, não houve mais mortes.
Entretanto, o fácil e incentivado acesso a armas resulta numa estatística muito mais alarmante. Por ano, suicidam-se quatro a cinco pessoas. A última morte registada na aldeia aconteceu há duas semanas. "São turistas que já vêm com isso na ideia e sabem que é fácil arranjar uma arma para o fazer", explica o gestor da única discoteca da aldeia. "Ou então são pessoas de cá, que não aguentam", repetindo a frase que mais se ouve para descrever a aldeia: "Disto, ou se gosta ou se odeia."

Não há idosos em Longyearbjin

Longyearbjin tem uma dúzia de nativos. Ou melhor, uma dúzia de pessoas que viveram ali a vida quase toda. Nenhuma com mais de 30 anos. Porque para se nascer, fazer os últimos anos de escola antes da universidade, tirar a carta, fazer o serviço militar obrigatório e para se passar os anos da reforma, é forçoso regressar ao continente.

De resto, a aldeia é feita de pessoas de todas as proveniências e com histórias de vida muito diferentes. E com um tempo médio de permanência relativamente reduzido. Mas há muitas nacionalidades, para além das 21 dos estudantes universitários. Há um grupo importante de tailandeses, que trabalham no sector dos serviços, há muitos cidadãos da Europa do Leste, emigrantes à procura dos impostos baixos e de outras regalias de Longyearbjin. "Tenho um colega bósnio que não está a gostar muito de viver aqui. Mas, como não é preciso estar registado em lado nenhum, não pedem 'papéis', ele continua por cá", diz o carpinteiro, finalmente revelando o pormenor-chave do seu colega: "Ele é um antigo criminoso da guerra dos Balcãs, tem um mandato internacional em cima dele, aqui ninguém o chateia."

Um vazio preenchido, segundo o gestor da discoteca local, por uma característica familiar ao continente e, em especial, ao sul da Europa. "O pior é a burocracia. São semanas para ter licenças, tem de pedir-se tudo por telefone e só depois é que conseguimos que alguma coisa funcione".

PEDRO FERREIRA ESTEVES in DN Online