Finalmente, o país decidiu discutir um tema verdadeiramente importante para o nosso futuro enquanto nação valente e imortal. Estava cansado de ver jornais e televisões cheios de notícias fúteis sobre o default da Grécia, a venda da TAP ou a crise do euro. O importante, o relevante, o determinante é o pastel de bacalhau com queijo da serra. Isso, sim, tira-me o sono. E é por isso que estou aqui hoje, qual Judas a caminho do lavatório, para me confessar publicamente perante vós: eu, Ele Mistério, provei o pastel de bacalhau com queijo da Serra. Quando Maria de Lourdes Modesto fala, eu levanto-me da cadeira para ouvir em sentido. Quando Maria de Lourdes Modesto grita "obscenidade" e "pornográfica figura", eu transformo-me no Diácono Remédios, de bazuca ao ombro. No entanto, desta vez não resisti à tentação. Eu sei que é uma traição nacional, mas provei. Chamem-me pornógrafo, chamem-me Animatógrafo do Rossio, chamem-me o que quiserem... Mas eu fui lá, entrei por aquela porta de pecado, peguei num pastel de bacalhau carregado de queijo da Serra e trinquei. Devo mesmo confessar que degluti. Pior: até digeri.
O ambiente Mas antes de falarmos do pastel de bacalhau, deixem-me só fazer duas ou três considerações – sempre relevantes e muito oportunas – sobre o espaço da nova e polémica Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau. A loja abriu há pouco mais de um mês na rua Augusta e causou polémica desde o primeiro segundo por causa do espectáculo que armou à volta: colocou cartazes a tapar as janelas, toldos no edifício, anúncios na rua e música aos gritos.
Felizmente, eu só lá fui esta semana, por isso não encontrei os cartazes nas janelas, mas contei, pelo menos, seis brasões espalhados pela fachada do edifício, como se fosse a casa do Miguel Horta e Costa poucos dias depois de ter comprado o seu novo título de barão ao D. Duarte. Convenhamos que seis brasões é um ligeiro exagero. Mais ainda se estivermos a falar de brasões feitos em poliuretano, a imitar bronze antigo, e que, vistos de perto, têm apenas as iniciais CPPB (Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau).
Depois, no interior existem, além de outros tantos brasões, várias referências ao ano da graça de 1904. Mas, mais uma vez, se olhar de perto, poderá perceber que, na verdade, o texto diz "receita tradicional – desde 1904". Ou seja, a receita tradicional é que é de 1904 – e não a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, que abriu há um mês. Mais: a receita tradicional não tem qualquer vestígio de queijo da serra, limita-se a inspirar a massa do pastel de bacalhau.
Os pastéis de bacalhau
Foi por isso que consegui chegar até ao balcão e pedir o famoso pastel. Entre dois turistas americanos, com meias brancas a intercalarem os calções com as sandálias Timberland, e um casal de ucranianos, que comparava o ouro dos relógios com o poliuretano dos brasões, consegui perceber que o esquema aqui funciona em regime de pré-pagamento. Fui pacientemente até à fila da caixa registadora e fiz o meu pedido. Mais um choque: cada pastel de bacalhau com queijo da serra custa €3,45.
– Três euros e quarenta e cinco cêntimos?!
– É que levam queijo da serra e são muito maiores do que os normais.
O curto diálogo com a senhora que me atendeu explicou o motivo de fazerem pastéis de bacalhau em formato XXL – é preciso justificar o preço. E neste caso, justificou-se com mais um pouco de bacalhau e batata.
Finalmente, vamos ao pastel. Cada exemplar vendido nesta loja leva 120 gramas de massa de pastel de bacalhau, inspirada na receita publicada por Carlos Bento da Maia, em 1904, no seu Tratado Completo de Cozinha e de Copa, o primeiro registo escrito desta receita. A isto ainda acrescentaram 20 gramas de queijo da serra. Os pastéis são preparados na própria loja, à vista de toda a gente e fritos em azeite.
Primeiro ponto: o tamanho é um verdadeiro exagero. Ninguém consegue comer um pastel de bacalhau daquele tamanho monstruoso sem enjoar – com excepção talvez do ucraniano que estava atrás de mim na fila. Se quiser acompanhar o pastel com uma salada mista e transformá-lo numa refeição principal (algo que não pode fazer aqui), tudo bem. Caso contrário, o melhor é dividir.
Segundo ponto: o exterior do pastel vem liso e certinho demais para o meu gosto. Eu gosto dos altos e baixos do exterior do pastel, dos fios de bacalhau que, dourados, rompem a cobertura. Um pastel muito certinho é sinal de batata a mais ou de bacalhau a menos. E isso confirma-se com a primeira trinca que se dá na ponta do pastel, ainda antes de chegar ao recheio de queijo da serra: a massa é muito seca e quase não se sente os fios do bacalhau desfiado.
Finalmente, o ponto da discórdia, a pornografia, o deboche: o queijo da serra. Devo dizer que foi aquilo de que mais gostei neste pastel. Que me perdoe a Maria de Lourdes Modesto e todos os outros indignados deste país, mas a ligação com o queijo está aprovadíssima. Seguramente que haverá milhares de argumentos para atacar esta combinação, seguramente que duas aulas de História da Gastronomia me fariam mudar radicalmente de opinião, mas a mim soube-me bem.
E porquê? Porque o pastel é servido ainda morno e o queijo está totalmente derretido no interior. Ainda por cima, o queijo vem numa quantidade generosíssima. Depois da primeira trincadela seca, o queijo toma conta do pastel com se de um rio de lava se tratasse. E junta, a uma massa ligeiramente insípida, um paladar único. Se gostar de queijo da serra, é irresistível provar.
Se calhar se a massa do pastel tivesse mais bacalhau e fosse menos seca, o resultado seria o enjoo e a pornografia de que todos falam. Mas eu não achei. As duas coisas ligam bem. E só são um exagero na quantidade. Para mim, depois do binómio homem-cão acabou de nascer o binómio queijo-pastel. Agora venham de lá essas ofensas que eu estou pronto para tudo.
O bom
O queijo derretido dentro do pastel de bacalhau
O mau
O tamanho e o preço do pastel
O péssimo
As paredes douradas e os brasões na fachada do edifício
Um abraço para o pastel de bacalhau onde quer que o queijo da serra esteja,
via o 'casal mistério'